quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A vida de quem vive a morte


Por Maria Clara Pereira e Mariana Camargo


Profissionais da saúde que se dedicam a cuidados paliativos enfrentam dificuldades no Brasil


Mariane Oliveira, de 34 anos, trabalha com cuidados paliativos desde 2013. Intensivista e paliativista no hospital Villa Lobos, ela afirma ter sido escolhida pela área, e não o contrário. Quando menos esperava, teve que cuidar de um garoto de 18 anos com morte encefálica. Teve que aprender correndo sobre o assunto para lidar com a família do rapaz. “Foi aí que começou o encantamento de cuidar de um morto, para ele dar a vida a outros que estavam na fila de transplante”, conta a médica, empolgada, sentada no escritório da sua casa em Interlagos, no sul de São Paulo, demonstrando todo o seu fascínio pelos cuidados paliativos.


Lidar com a família do paciente sempre foi uma dificuldade para Mariane. Até que percebeu a necessidade de se aprofundar e melhorar nesse quesito. “Você tem que olhar a família, a família faz muito parte do cuidar”, salienta. Segundo a intensivista, que se formou em 2005, cuidados paliativos nunca foram abordados durante a faculdade, ela só foi se aprofundar no assunto durante sua pós graduação em 2017. No hospital em que trabalha não existe uma equipe especializada em cuidados paliativos, o que é fundamental para quem trabalha com UTI, e isso acaba fazendo com que ela e outros médicos que entendem do assunto preparem a equipe durante o próprio trabalho. “É muito mirim o que a gente tem ainda, porque é desconhecido e as pessoas acham muito que é terminalidade. Você tem que acolher todo mundo. Não pode desistir, tem que ir ensinando, conversando, que vai mudando a cabeça”. 


Um profissional paliativista deve se preocupar em atender as necessidades do paciente e de sua família, abrangendo as dimensões físicas, emocionais, sociais, espirituais e familiares. “O cuidado paliativo não é uma abordagem de doença, ele é uma abordagem muito maior. O diferencial é esse olhar holístico, de ir além da doença e englobar família, religiosidade, e o que mais for importante para o paciente”, afirma Mariane.


Historicamente, o cuidado paliativo surgiu em 1947, na Inglaterra, mas só foi definido conceitualmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1990. Consiste na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais.


No Brasil, de acordo com levantamento recente realizado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), existem em torno de 150 equipes especializadas em cuidados paliativos para mais de cinco mil hospitais espalhados pelo país. 


Por se tratar de um cuidado integral, é necessário uma equipe de profissionais da saúde capacitados para proporcionar esse tipo de tratamento aos pacientes, desde médicos até fonoaudiólogos, visando atender cada desconforto que possa surgir. “O cuidado paliativo envolve uma equipe multiprofissional. Quando a equipe não conhece, o trabalho se torna muito difícil, porque não sabem manejar, não sabem cuidar do sofrimento. Eu vejo muitos pacientes sofrendo e eu acabo sofrendo também, porque não consigo fazer meu trabalho sozinha”, conta Victoria Garcia, psicóloga hospitalar e paliativista no Hospital Maternidade Metropolitano, na unidade Lapa.


Victoria tem apenas quatro anos de formada em Psicologia e já se especializou em cuidados paliativos ao enxergar a necessidade desse tipo de abordagem dentro do hospital. A psicóloga conta que a morte nunca foi um tabu para ela, mas que muitas vezes sua própria família chega a ficar assustada com a naturalidade com que ela trata do assunto. Durante a entrevista no terraço de um café no centro de São Paulo,  foi perceptível a naturalidade com que Victoria conduziu a conversa, realmente deixando o assunto considerado denso fluir de maneira muito leve.


A morte nos países latinos ainda é um tabu muito grande, as pessoas a temem e querem fazer de tudo para que seu ente querido não chegue até ela, por isso o cuidado paliativo ainda é incipiente na região. Muitas pessoas, até mesmo da área da saúde, veem esse tipo de tratamento como última opção, como algo terminal, quando já não se tem mais o que fazer, o que acaba dando sobrevida e não qualidade de vida ao doente. “As pessoas não entendem que é uma qualidade de vida no período que o paciente tiver. É fundamental prezar pela qualidade de vida de qualquer paciente, em qualquer condição”, afirma Daniela Masi, psicóloga no Hospital Nossa Senhora de Fátima, em Osasco. 


Daniela nos recebeu em sua sala, no Hospital Nossa Senhora de Fátima, local considerado por ela insuficiente para atender os pacientes como gostaria, de maneira mais pessoal e intimista. A franja loira por cima da maquiagem impecável escondia, às 9h da manhã, a correria pela qual já havia passado tão cedo. A psicóloga de 37 anos também atende pacientes com ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) em home care e enfatiza a necessidade de fornecer qualidade de vida ao paciente, atender aos seus desejos, mesmo que sejam pequenos, como aproveitar o sol no terraço com seus gatos. 


Esse tipo de tratamento se faz cada vez mais necessário em países onde as principais causas de morte são doenças crônicas, como câncer, diabetes, distúrbios respiratórios e doenças cardiovasculares, pois se tratam de doenças que progridem ao decorrer da vida, e também devido ao crescente envelhecimento da população. 


Segundo levantamento, realizado pelo The Economist, sobre a qualidade de morte ao redor do mundo, em 2015, dos 80 países citados, o Brasil está em 42º melhor país para se morrer. Levando em conta a quantidade de pessoas que morreram que poderiam ter sido paliadas dados os recursos do país, o Brasil tem 0,3% de capacidade de proporcionar esse tipo de cuidado a um paciente, diferente de países como Reino Unido, Estados Unidos e Austrália, que são referência nesse assunto. “É muito trabalho de formiguinha, porque tem muito a ver com ética e cultura. A população latina é muito apegada com vida, com coração batendo, mas esse pensamento precisa mudar. É vida de que jeito? Até que ponto?”, critica Mariane.


Diferente do que muitos pensam, o cuidado paliativo não é só para pacientes terminais, mas sim para qualquer paciente que tenha uma doença grave. Uma pessoa que nasce com uma doença, por exemplo, deveria ser paliada desde a infância, tratando pequenas infecções e podendo escolher até onde ir com o tratamento, garantindo a sua qualidade de vida. O cuidado paliativo é sobre o paciente poder dizer até onde o tratamento curativo pode ir, poder programar toda sua terapia, dizer o que quer e o que não quer, e ter um suporte para tudo isso, inclusive para dar apoio à sua família. “O cuidado paliativo é você permitir à pessoa escrever a sua biografia, com o que ela está disposta a passar, o que aceita até o último suspiro da vida dele. É pensar o que é importante, o que toleraria, que tipo de sofrimento”, destaca Mariane.


Como se distanciar?

Daniela confessa que por muitos anos fez terapia para aprender a lidar e separar os problemas de seus pacientes dos seus próprios, que, muitas vezes, vão de encontro uns aos outros por se assimilarem, e outras, são histórias muito pesadas que acabavam a consumindo. 


A psicóloga conta que o trajeto do hospital até sua casa ainda é um momento de certa tensão. O caminho é longo, o trânsito na capital é intenso e as histórias dos pacientes ainda estão frescas na memória. Esses itens, quando juntos, criam nela um sentimento inevitável de agitação. Hoje, a psicóloga percebeu que a melhor forma para ela se desligar do trabalho é deitar no sofá com seus cachorros e assistir a um filme. “Às vezes tem alguns casos que eu fico pensando, mas não é um pensar que me desgasta, é um pensar porque eu sou humana e fico preocupada, mas não me consome mais quando eu consigo me desligar”.


Já Mariane acredita que por trabalhar em UTI, o ritmo intenso não lhe dá tempo para lidar com o processo de luto, por isso ela se diz já acostumada com a morte em si. “Um paciente aqui morreu, mas o do lado está ali e precisa de atenção. É um processo natural, a rotina te ensina”. 


Victória tem em sua rotina muito em comum com Daniela. Ela também cita que fazer terapia, passear com o cachorro e assistir a filmes e séries são uma boa solução para aliviar a mente das situações delicadas e temas abordados no dia a dia de uma paliativista.


Planejando o fim

Trabalhar na área de cuidados paliativos torna inelutável a autorreflexão a respeito da morte. Ao se deparar tantas vezes com a divergência de interesses entre pacientes e suas famílias, Daniela e Victória têm suas vontades a respeito do futuro muito bem estabelecidas, e no caso de Daniela, até documentadas.


“As pessoas falavam: “Nossa, você é louca né? Como é que você tem prazer em falar da morte?” Eu tenho. Eu falo assim: “Eu gosto de preparar a pessoa pra morte”, mas quem sou eu pra preparar, né? Eu não tenho medo de morrer, nenhum. Gostaria antes de ter filho, de fazer algumas coisas que eu ainda não fiz, mas assim, não tenho medo de morrer. Tenho um testamento vital, que é o que eu quero que faça se eu adoecer. Quero entrar em paliativo, isso eu já deixei registrado em cartório, minha família tem que respeitar. Mas assim, foi atuando que eu vi que eu gosto muito”, diz a psicóloga Daniela, sobre o seu futuro.


“Quando eu falo lá em casa: “Ah, mas se acontecer alguma coisa comigo?” Meus pais já falam “Ah Deus ô livre! Não fala!”. Mas gente, e se acontecer, né? Eu não sei né, vai que acontece alguma coisa. Eu não confio na minha família para decidir esse tipo de coisa, é colocar uma responsabilidade muito grande nas mãos deles né? Mas eu vivo conversando… Todo mundo que me conhece já sabe o que eu quero e o que eu não quero, todo mundo já sabe. Inclusive meus pais, meu noivo, todo mundo. Mas eu… eu sou filha única, se acontecer um negócio desses com o meus pais, eu não faço a menor ideia do que eles querem”,  conclui a psicóloga Victória, assertivamente.




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